segunda-feira, 17 de março de 2014

Texto sobre a vida de um boi.



Logo que nasci, conheci o meu maior inimigo. Eu fui posto no chão, vi a minha mãe aflita ser tocada para longe e sofri um incômodo ardido no umbigo.
Com poucas semanas de idade, tive a minha cara queimada e uma parte da minha orelha aparada. Era tangido de lá pra cá e daqui pra lá, sem entender direito aquela movimentação, que, para mim, parecia desnecessária.
Quando pensava em alçar meus primeiros passos de independência, minha mãe sumiu. Levaram-na para tão longe que nunca mais a vi e nem tive notícias.



Ao aflorar a adolescência, com os hormônios à flor da pele, fui tocado ao curral, no que parecia uma nova movimentação injustificável. Mas, coitado de mim, eu não poderia prever que sentiria uma dor tão intensa e que viria incomodar-me por tantos dias.
Enfim, as coisas pareciam melhorar. Eu ocupava as mais suculentas pastagens da fazenda, onde anteriormente só era permitida a entrada dos meus irmãos mais velhos, que ali ficavam algum tempo e, depois, misteriosamente sumiam do alcance das minhas vistas.
As coisas pareciam estar tão boas e consegui até acumular alguns quilos a mais. O meu inimigo passava por perto, esboçava alguns sorrisos, porém não nos incomodava. Cheguei até a pensar que poderíamos vir a ser bons amigos, pois a calmaria era tamanha que podia me aproximar, chegar bem perto e até cheirar sua mão.


Um dia, bem de manhãzinha, surgiu na colina um comboio de caminhões. Isto não era tão comum, acontecia mais ou menos de mês em mês. Neste dia, percebi que vinha vindo em nossa direção um “punhado” dos nossos antigos inimigos, porém desta vez sem a preocupação de não nos incomodar. Eles nos cercaram e nos conduziram até o curral.
Neste dia a gritaria e a agitação eram inéditas. Uma multidão de inimigos estava presente no mangueiro. Uns tocavam, outros gritavam, abriam e fechavam porteiras, sempre nos conduzindo em direção aos caminhões. Até na entrada da carroceria uma movimentação intensa, mas quase normal, não fosse um cutucãozinho repentino e dolorido que nos fazia pular gaiola adentro.
Saímos da fazenda e viajamos muito, por caminhos nunca antes percorridos. Comecei a entender para onde meus irmãos mais velhos eram levados e fiquei ansioso para revê-los.
Após muitos quilômetros de estradas, chegamos num enorme curralão, com construções grandiosas ao redor. Sentia-me apreensivo pela oportunidade de rever meus antigos conterrâneos, mas só via outros animais, tão impressionados e perdidos quanto nós.
Passou o resto do dia. Na madrugada seguinte, com céu estrelado, uma chuva misteriosa caiu sobre nossos lombos, porteiras se abriram e ouviam-se gritos. Um inimigo solitário nos conduzia em direção a uma rampa assustadora. Subimos a rampa empurrados uns pelos outros e vez em quando cutucados pela varinha dolorosa. Finalmente cheguei ao fim do corredor, não havia mais para onde ir, nem mesmo o que fazer. Só recordo-me de meu inimigo aproximar-se e eu pensar poder lamber-lhe a mão.
Bom, agora, aqui onde estou, só tenho duas certezas: ter cumprido minha sina e não mais ser incomodado pelo inimigo. Porém queria que me fosse permitido um último pedido. Pediria que as pessoas que colhem benefícios à custa da nossa saga, que nos tratem com respeito e decência, pois o boi tange a vida de muita gente.

Por Alexandre Brandão Nunes (Chico), que é pecuarista, agricultor e médico veterinário, proprietário das Fazendas Tabebuia e Araruna em Dourados, MS. Texto extraído do site www.ruralcentro.uol.com.br

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